QUEM SÃO OS PROFESSORES BRASILEIROS?
Gustavo Ioschpe |
"A pessoas que optam pela carreira de
professor não são derrotadas. Pelo contrário, são profundamente idealistas.
Querem mudar o mundo, mudando a vida de seus alunos."
É impressionante como sabemos pouco sobre os
principais atores do nosso sistema educacional, os professores. Claro, se você
acredita na maioria das notícias e artigos veiculados sobre eles, já deve ter
um quadro perfeito formado na cabeça: os professores são desmotivados porque
ganham pouco, precisam trabalhar em muitas escolas para conseguir pagar as
contas do fim do mês. O sujeito se torna professor, no Brasil, por falta de
opção, já que não consegue entrar em outros cursos superiores. Portanto, já
chega à carreira desmotivado, e, ao deparar com o desprezo da sociedade e seus
governantes, desiste da profissão e só permanece nela por não ter alternativa.
Essa é a versão propalada aos quatro ventos. Mas eu gostaria que você, dileto
leitor, consideres se uma hipótese distinta. E para isso não quero usar a minha
opinião, mas dar voz aos próprios professores. Os dados que vêm a seguir são
extraídos de questionários respondidos por professores da rede pública
brasileira, em um caso para compor um "Perfil do Professor
Brasileiro" da Unesco, em outro em pesquisa Ibope para a Fundação Victor
Civita e, finalmente, na Prova Brasil de 2009.
Comecemos pelo início. Não é verdade que os
professores caiam de paraquedas na carreira. O acaso motivou a entrada de só 8%
dos mestres, e só 2% foi dar aula por não conseguir outro emprego. Sessenta e
três por cento dos docentes têm inclusive outros membros da família na
profissão. Perguntados sobre a motivação para exercerem a carreira, 53% dizem
que é por "amor a profissão" e outros 14% apontam ser para
"contribuir para uma sociedade melhor". Só 15% citam motivos que
podem ser interpretados como oportunistas ou indiferentes à função social da
profissão (9% mencionam "realização profissional" e 6%,
"salário/benefícios oferecidos"). O professor não tem uma má
percepção da sua profissão: 81% concordam que são "muito importantes para
a sociedade" e 78% dizem ter orgulho de ser professor (a).
As pessoas que optam pela carreira de professor
não são derrotadas. Pelo contrário, são profundamente idealistas. Querem mudar
o mundo, mudando a vida de seus alunos. Quase três quartos dos professores
(72%) acham que uma das finalidades mais importantes da educação é "formar
cidadãos conscientes". Nove entre dez professores concordam que "o
professor deve desenvolver a consciência social e política das novas
gerações". Apenas 45% acreditam que "o professor deve evitar toda
forma de militância e compromisso ideológico em sala de aula".
Esse jovem idealista então vai para a
universidade estudar pedagogia ou licenciatura na área que lhe interessa (fato
sobre esses cursos em breve). Depois começa a trabalhar.
As condições objetivas de sua carreira são
satisfatórias. A ideia de que o professor precisa correr de um lado para o
outro, acumulando escolas e horas insanas de trabalho, não resiste à apuração
dos fatos. Quase seis em cada dez professores (57%) trabalham em apenas uma
escola. Em três ou mais escolas, só 6% do total. Um terço dos professores dá
até trinta horas de aula por semana. Vinte e oito por cento lecionam quarenta
horas (a carga normal do trabalhador brasileiro) e só um quarto dos professores
tem jornada acima de quarenta horas por semana. Dois terços dos professores têm
estabilidade no emprego - é praticamente impossível demiti-los. Felizmente,
casos de violência na escola são menos comuns do que a leitura de jornais nos
faria crer: 10% dos professores se disseram vítimas de agressão física no
último ano. Por tudo isso, a sensação geral dos professores com sua carreira é
de satisfação. Quase dois terços (63%) estão mais ou igualmente satisfeitos com
a profissão quando entrevistados do que no início de sua carreira. O grau de
satisfação médio do professor, de zero a 10, é de 7,9. Só 10% dizem querer
abandonar a carreira.
Essa satisfação é curiosa, porque os
professores estão falhando na sua tarefa mais simples, que é transmitir
conhecimentos e desenvolver as capacidades cognitivas de seus alunos. Não sou
eu nem os testes nacionais e internacionais de educação que atestamos isso: são
os próprios professores. Só 32% deles concordariam em dizer "meus alunos
aprendem de fato". Dois terços dos professores admitem que só conseguem
desenvolver entre 40% e 80% do conteúdo previsto no ano. Só um terço coloca
esse patamar acima de 80%. Sintomaticamente, o questionário do MEC que pergunta
sobre esse desempenho nem inclui a possibilidade de o professor ter
desenvolvido mais conteúdo que o previsto. O que explica esse insucesso?
Um dos principais violões é identificado pelos
próprios professores: seus cursos universitários. Só 34% dos professores
acreditam que sua formação está totalmente adequada à realidade do aluno.
Nossas faculdades de formação de professores estão mais preocupadas em agradar
ao pendor idealista de seus alunos do que em satisfazer suas necessidades
técnicas. São cursos profundamente ideologizados e teóricos, descolados da
realidade de uma sala de aula média brasileira.
Então se dá o momento-chave para entendermos
nosso sistema educacional: o professor sai da universidade, passa em um concurso,
chega à sala de aula e, na maioria dos casos, fracassa. Seus alunos não
aprendem. Esse professor poderia entrar em crise, poderia buscar ajuda, poderia
voltar a estudar, poderia ter planos de apoio de sua Secretaria de Educação.
Mas nada disso costuma acontecer, porque não há sanção ao professor ineficaz,
nem incentivo ao professor obstinado. O professor que fracassa continuará
recebendo seu salário, pois tem estabilidade. Seguirá, inclusive, sendo
promovido, pois na maioria das redes a promoção se dá por tempo de serviço ou
titulação, não por mérito. Esse professor não será nem incomodado: um dos
pilares de grande parte de nossas redes é a autonomia da escola, a ideia de que
ninguém pode dizer ao professor o que ou como ensinar. Pais e alunos tampouco
costumam se manifestar: confundem uma escola limpa, bonita, que oferece merenda
e uniforme com educação de qualidade. O professor pode até faltar ao trabalho
sem medo de sanções. Estudo recente sobre a rede estadual de São Paulo mostrou
que o professor médio falta em dezoito dos 200 dias letivos. É um índice de
falta muito superior até mesmo ao dos outros servidores públicos, que já é
maior que na iniciativa privada. Depois de uma investigação de meses com o
repórter Rafael Foltram junto às secretarias estaduais, descobrimos que há
situações muito piores, com faltas entre 11% e 15% dos dias letivos. E isso é
certamente uma subestimação, pois a maioria das secretarias não fica sabendo
quando um professor se ausenta durante parte de um dia; algumas só são notificadas
em faltas de três dias ou mais. O professor deixa de se preocupar em investir
em si mesmo: 74% veem TV todos os dias, mas só 12% leem livros de ficção e 17%
participam habitualmente de seminários de atualização.
Mesmo nesse sistema tão permissivo e
ineficiente, persiste um problema: os professores sabem que seus alunos não
estão aprendendo. E é extraordinariamente difícil a qualquer pessoa continuar
em uma carreira, indo ao trabalho todos os dias, sabendo-se um fracasso. Muitos
profissionais sucumbem à depressão e ao esgotamento. Alguns abandonam a
carreira. Mas a maioria resolve essa dissonância cognitiva (eu sou um bom
professor, meu aluno não aprende) de duas maneiras: culpando o aluno e
redefinindo o "sucesso". Alfabetizar e ensinar a tabuada, por
exemplo, deixam de ser medições válidas de êxito e passam a ser vistos como
"reducionismo". O importante é a libertação do espírito, e isso
qualquer um pode definir da maneira que lhe gerar conforto, no recôndito de sua
alma. Já a culpabilização do aluno e de sua família é mais ostensiva. Eis as
explicações dos professores para as dificuldades de aprendizagem dos alunos:
94% apontam a "falta de assistência e acompanhamento da família", 89%
citam o "desinteresse e a falta de esforço do aluno" e 84% dizem ser
"decorrentes do meio em que o aluno vive". Nossos alunos,
especialmente os pobres, são massacrados por um mar de descrença e
descompromisso do sistema que a sociedade financia para educá-los. Só 7% dos
professores acreditam que quase todos os seus alunos entrarão na universidade.
Esses professores criaram uma leitura de mundo
á parte e completa para se blindarem contra o próprio insucesso. Qualquer
crítica ou cobrança só pode vir de algum celerado que pretende privatizar a
escola ou quer "alienar" o alunado. Pesquisas não são confiáveis,
números mentem, estatísticas desumanizam: os professores não precisam de ajuda,
muito menos de interferência. Segundo eles, o exercício da docência é algo tão
particular, hermético e incompreensível que não pode se sujeitar aos métodos
investigativos que analisam todas as outras áreas do conhecimento humano: só
quem vive a mesma situação é que pode falar alguma coisa. Na área da saúde,
seria ridículo dizer que um pesquisador de laboratório não pode criar um
remédio porque nunca atendeu pacientes com aquela doença ou que um médico só
poderia realmente tratar do docente se tivesse passado um tempo considerável
internado no hospital. Na educação brasileira, o discurso de que os "de
fora" não podem se meter é aceito sem hesitação.
É por isso que me parecem disparatadas as
iniciativas que querem usar de aumentos orçamentários para "recuperar a
dignidade do magistério" ou melhorar a educação dobrando os salários dos
profissionais da área. A maioria dos professores não está com a dignidade
abalada. Está satisfeita, acomodada. O professor não se tornará um profissional
mais exitoso se não tiver uma profunda melhora de preparo, por mais que seu
salário seja aumentado. Se compararmos nosso alto gasto em educação com o baixo
resultado que o sistema educacional entrega ao país, o surpreendente é que a
autoestima dos educadores esteja tão alta. Ao lidar com o "luto" dos
nosso insucesso educacional, a maioria dos professores ainda está na fase da
negação (a culpa é dos alunos e pais) e raiva (contra o mundo neoliberal, a
falta de apoio etc.). Esse mecanismo de defesa tem uma utilidade importante:
faz com que o professor possa prosseguir em sua carreira, sem sucumbir ao
desespero que fatalmente adviria se percebesse a dimensão de seu insucesso.
Mas, para o país, cobra um preço alto. Primeiro, porque aliena os professores
bons e aqueles que ainda não são bons, mas são comprometidos, batalhadores. É
difícil visitar uma escola em que não haja uma tensão surda entre a minoria
comprometida e a maioria acomodada, e os competentes não querem trabalhar em um
ambiente de inércia. A reação histérica de muitos professores à página no
Facebook da estudante Isadora Faber (que chegou a ser acusada criminalmente de
calúnia e difamação por uma professor, o que levou a menina de 13 anos a ter de
prestar depoimento em delegacia) é demonstrativa da total intransigência desses
profissionais com qualquer denúncia que abale o status quo. Em segundo lugar, e
mais importante, essa resistência impede os próprios professores de procurar as
ferramentas que poderiam melhorar o seu desempenho acadêmico. Como sabe
qualquer terapeuta, só é possível ajudar quem quer ser ajudado.
A sociedade brasileira não pode retirar os maus
professores do cargo, pois a maioria tem estabilidade no emprego. Mas tampouco
pode tolerar o seu imobilismo. As mirabolantes e simplistas soluções
orçamentárias não resolvem esse problema tão difícil: como fazer que
professores dessensibilizados pro anos ou décadas de cinismo voltem a ter a
esperança e o brilho nos olhos que os fizeram optar por essa linda profissão.
Ponto de Vista de Gustavo Ioschpe, articulista
da revista Veja (21/11).
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